sábado, 7 de maio de 2011

Estrada da Morte

Vertiginosa travessia
Uma das emoções mais especiais que a nossa expedição vivenciou durante o trajeto de mais de cinco mil quilômetros de viagem, ao longo de quarenta e um dias de aventura repletos de experiências de todo tipo, foi, sem dúvida, o arrepiante percurso pela sempre perigosa, lendária e belíssima “Estrada da Morte”.


Paraíso perigoso
Quando, no decorrer da primeira etapa da Expedição Paralelo Quinze, transitamos por esta estrada ao mesmo tempo fascinante e amedrontadora, ela fez trabalhar os meus sentidos ao máximo e ao longo do seu acidentado trajeto eu descobri, surpreendido e encantado, maravilhas que me abriram a percepção de uma maneira mágica e intensa: cromáticos e clandestinos silvos de aves invisíveis, fantasmas escorregadios transitando pelo labirinto das matas enigmáticas; indóceis quedas de água da cada vez mais escassa neve dos Andes, trilhas pré-colombianas congeladas sob a mortalha das neves eternas, sugestivas rajadas de ventos errantes e poderosos, sombras fugidias e imprecisas vagueando entre paredões milenares e desconhecidos aromas florais, esvoaçando no ar puríssimo dos vales profundos. Isso sem falar da apavorante vertigem que tentava acovardar o corpo e o espírito, fazendo-me visualizar a dimensão exata da nossa fragilidade...



Luca Spinoza e Hélio Caldas

Não, não pense, por favor, que me extraviei nas pantanosas profundezas das abstrações mais alucinadas, ao tentar descrever o trajeto de uma simples estrada. Na verdade, é impossível deixar de ser meio subjetivo e surreal, ao escrever sobre este extraordinário lugar que, além de nos seduzir, tem o poder de acordar adormecidos e primitivos instintos.

Muitos são os estímulos sensoriais com que nos bombardeia a superlativa beleza desta serpeante e perigosíssima rota, literalmente esculpida na rocha quebradiça das exuberantes encostas orientais dos Andes bolivianos.


Assim como nos maravilhamos com suas imponentes paragens, que também possuem comovedoras e trágicas histórias humanas, ali nosso instinto de sobrevivência nos mantém em alerta constante, pois há permanentes perigos camuflados no meio das paisagens estonteantes.

Trabalhos forçados
Incontáveis e lúgubres cruzes de madeira, assim como pequenas lápides de pedra cobertas de epitáfios, advertem que milhares de pessoas morreram ao longo de décadas de funcionamento da estrada. É que a precariedade e pouca largura dela, somadas à falta de manutenção dos carros, desrespeito às regras de circulação, visibilidade reduzida, geografia abrupta, instabilidade geológica e condições climáticas usualmente adversas, fizeram com que centenas de veículos despencassem junto aos seus passageiros; se espatifando segundos depois (carne humana e metal) no fundo de assustadores precipícios de centenas de metros de profundidade. 

Se o nome popular desta rota nos carrega ao universo da fatalidade, ela também é um dos mais espetaculares e deslumbrantes cenários naturais do departamento de La Paz e da Bolívia.

Esta vertiginosa estrada de chão se inicia no hoje fantasma arraial de Chuspipata, para depois atravessar as ladeiras dos bosques nublados de Sacramento e finalizar no alquebrado vilarejo de Yolosa, em um arrepiante trajeto que pela intensidade com que estimula a adrenalina e os reflexos, não deixa ninguém indiferente.

Cinzelada diretamente na rocha com golpes de picareta e explosões de dinamite, é uma rota extremamente estreita e sinuosa, com incontáveis e fechadíssimas curvas que vão bordejando precipícios que chegam ao exagero de alcançar 1000 metros de queda livre.


Para dar um toque ainda mais pitoresco e quase irreal à aventura de descê-la, em meio do seu percurso descobrimos, atônitos, que uma belíssima cachoeira chamada de São João (San Juan) cai sobre o caminho desde um impressionante paredão de mais de cem metros de altura, coberto de bromélias, líquens, orquídeas, samambaias e musgos aveludados.

Em um mirante que fica em frente dela, há uma grande lápide com inscrições em idioma hebreu, homenageando alguns ciclistas israelenses que caíram ao abismo em anos passados.


Turistas Israelitas na lápide

Construída pelo trabalho forçado de desafortunados prisioneiros paraguaios capturados durante a sangrenta Guerra do Chaco, que enfrentou a Bolívia e Paraguai nos anos trinta do século XX, esta estrada foi durante muitos anos o único acesso àquela isolada região.

Descida radical
Antes que esta polêmica estrada fosse desativada definitivamente no ano 2006, centenas de veículos a percorriam diariamente, muitos deles carregados de frutas e madeira para abastecer a cidade de La Paz. O mais surpreendente era que desafiando todas as normas de trânsito das nossas terras americanas, a subida era feita pela esquerda do caminho, para que os caminhões carregados transitassem grudados à rocha. O motivo dessa inusitada inversão das pistas de circulação era evitar que, ao se encontrar com outro veículo descendo, o peso dos caminhões ou ônibus fizesse ceder o terreno e os precipitasse ao despenhadeiro.


Como, além disso, a chuva e a névoa são muito frequentes nessa região, diminuindo notavelmente a visibilidade, fazendo o chão escorregadio e afrouxando enormes pedras que caem das montanhas, em 1995 a rota foi batizada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como a “estrada mais perigosa do mundo”.


Apelidada por essas razões com o funesto nome de “Estrada da Morte”, atualmente transformou-se numa rota ecológico-turística, visitada por mais de 30.000 ciclistas ao ano. Chegados de diversos países, esses amantes do esporte radical e da aventura, enfrentam motivados e sorridentes o desafio de descer 3500 metros de desnível através de um percurso de 64 km. Todo se inicia em La Cumbre, a 4700 gélidos metros de altitude, simbólico ponto de transição entre o planalto andino e os vales subtropicais de Los Yungas. Horas depois de uma descida arriscada e inesquecível, que faz valorizar a vida e a saúde numa nova dimensão, tudo finaliza em grande estilo no pequeno povoado de Yolosa.

Todo aventureiro de alma de artista, deve visitar pelo menos uma vez na vida esta maravilhosa estrada que, apesar de sua fatídica fama e das mortais estatísticas que lhe acompanham, é certamente um lugar muito especial, onde a potência e a magia da natureza se percebem em todo seu esplendor.



Texto: Luca Spinoza
Revisão do texto: Alda Quadros do Couto
Fotos:  Mario Friedlander
Estamos encaminhando a todos nossos parceiros a versão final do relatório executivo de nossa primeira viagem a Bolívia.

Aproveitamos a ocasião para agradecermos publicamente a todos eles pelo apoio dado ao nosso projeto.